segunda-feira, 11 de junho de 2012


Galerinha, abaixo estão os texto que vocês escolherão para encenar.


 
Os cimos
O inverso afastamento

Outra era a vez. De sorte que de novo o menino viajava para o lugar onde as muitas mil pessoas faziam a grande cidade. Vinha, porém, só com o tio, e era uma íngreme partida. Entrara aturdido no avião, a esmo tropeçante, enrolava-o de por dentro um estufo como cansaço; fingia apenas que sorria, quando lhe falavam. Sabia que a mãe estava doente. Por isso o mandavam para fora, decerto por demorados dias, decerto porque era preciso. Por isso tinham querido que trouxesse os brinquedos, a tia entregando-lhe ainda em mão o preferido, que era o de dar sorte: um bonequinho macaquinho, de calças pardas e chapéu vermelho, alta pluma. O qual, o prévio lugar dele sendo na mesinha, em seu quarto. Pudesse se mexer e viver de gente, e havia de ser o mais impagável e arteiro deste mundo.
O menino cobrava maior medo, à medida que os outros mais bondosos para com ele se mostravam. Se o tio, gracejando, animava-o a espiar na janelinha ou escolher as revistas, sabia que o tio não estava de todo sincero. Outros sustos levava. Se encarasse pensamento na lembrança da mãe, iria chorar.
A mãe e o sofrimento não cabiam de uma vez no espaço de instante, formavam avesso - do horrível do impossível. Nem ele isso entendia, tudo se transtornando então em sua cabecinha. Era assim: alguma coisa, maior que todas, podia, ia acontecer?
Nem valia espiar, correndo em direções contrárias, as nuvens superpostas, de longe ir. Também, todos, até o piloto, não eram tristes, em seus modos, só de mentira no normal alegrados? O tio, com uma gravata verde, nela estava limpando os óculos, decerto não havia de ter posto a gravata tão bonita, se à mãe o perigo ameaçasse.
Mas o menino concebia um remorso, de ter no bolso o bonequinho macaquinho, engraçado e sem mudar, só de brinquedo, e com a alta pluma no chapeuzinho encarnado. Devia jogar fora? Não, o macaquinho de calças pardas se dava de também miúdo companheiro, de não merecer maltratos. Desprendeu somente o chapeuzinho com a pluma, este, sim, jogou, agora não havia mais. E o menino estava muito dentro dele mesmo, em algum cantinho de si. Estava muito para trás. Ele, o pobrezinho sentado. O quanto queria dormir. A gente devia poder parar de estar tão acordado, quando precisasse, e adormecer seguro, salvo. Mas não dava conta. Tinha de tornar a abrir demais os olhos, às nuvens que ensaiam esculturas efêmeras. O tio olhava no relógio. Então, quando chegavam? Tudo era,todo- o tempo, mais ou menos igual, as coisas ou outras. A gente, não. A vida não parava nunca, para a gente poder viver direito, concertado? Até o macaquinho sem chapéu iria conhecer do mesmo jeito o tamanho daquelas árvores, da mata, pegadas ao terreiro da casa.
O pobre do macaquinho, tão pequeno, sozinho, tão sem mãe; pegava nele, no bolso, parecia que o macaquinho agradecia, e, lá dentro, no escuro, chorava.
Mas, a mãe, sendo só a alegria de momentos. Soubesse que um dia a mãe tinha de adoecer, então teria ficado sempre junto dela, espiando para ela, com força, sabendo muito que estava e que espiava com tanta força, ah. Nem teria brincado, nunca, nem outra coisa nenhuma, senão ficar perto, de não se separar nem para um fôlego, sem carecer de que acontecesse o nada. Do jeito feito agora, no coração do pensamento. Como sentia: com ela, mais do que se estivessem juntos, mesmo, de verdade.
O avião não cessava de atravessar a claridade enorme, ele voava o voo - que parecia estar parado.
Mas no ar passavam peixes negros, decerto para lá daquelas nuvens: lombos e garras. O menino sofria sofreado. O avião então estivesse parado voando - e voltando para trás, mais, e ele junto com a mãe, do modo que nem soubera, antes, que o assim era possível.


Aparecimento do pássaro
Na casa, que não mudara, entre e adiante das árvores, todos começaram a tratá-lo com qualidade de cuidado. Diziam que era pena não haver ali outros meninos. Sim, daria a eles os brinquedos; não queria brincar, mais nunca.
Enquanto a gente brincava, descuidoso, as coisas ruins já estavam armando a assanhação de acontecer: elas esperavam a gente atrás das portas.
Também não dava vontade sair de jipe, com o tio, se para a poeira, gente e terra. Segurava-se forte, fechados os olhos; o tio disse que ele não devia se agarrar com tão tesa força, mas deixar o corpo no ir e vir dos solavancos do carro. Se adoecesse, grave, também, que fosse - como ia ficar, mais longe da mãe, ou mais perto?
Ele mordeu seu coração. Nem quis falar com o macaquinho bonequinho. O dia, inteiro, servia era para se fazer o espalhamento no cansaço. Mesmo assim, à noite, não começava a dormir. O ar daquele lugar era friinho, mais fino. Deitado, o menino se sentia sustoso, o coração dando muita pancada. A mãe, isto é... E não podia logo dormir, e pela dita causa. O calado, o escuro, a casa, a noite – tudo caminhava devagar, para o outro dia. Ainda que a gente quisesse, nada podia parar, nem voltar para trás, para o que a gente já sabia, e de que gostava. Ele estava sozinho no quarto. Mas o bonequinho macaquinho não era mais o para a mesa de cabeceira: era o camarada, no travesseiro, de barriguinha para cima, pernas estendidas. O quarto do tio ficava ao lado, a parede estreita, de madeira.
O tio ressonava. O macaquinho, quase também, feito um muito velho menino. Alguma coisa da noite a gente estivesse furtando? E , vindo o outro dia, no não estar- mais-dormindo e não- estar ainda- acordado, o menino recebia uma claridade de juízo - feito um assopro - doce, solta.
Quase como assistir às certezas lembradas por um Qutro; era que nem uma espécie de cinema de desconhecidos pensamentos; feito ele estivesse podendo copiar no espirito ideias de gente muito grande. Tanto, que, por aí, desapareciam, esfiapadas.
Mas, naquele raiar, ele sabia e achava: que a gente nunca podia apreciar, direito, mesmo, as coisas bonitas ou boas, que aconteciam. Às vezes, porque sobrevinha depressa e inesperadamente, a gente nem estando arrumado. Ou esperadas, e então não tinham gosto de tão boas, eram só um arremedado grosseiro. Ou porque as outras coisas, as ruins, prosseguiam também, de lado e do outro, não deixando limpo lugar. Ou porque faltavam ainda outras coisas, acontecidas em diferentes ocasiões, mas que careciam de formar junto com aquelas, para o completo. Ou porque, mesmo enquanto estavam acontecendo, a gente sabia que elas já estavam caminhando, para se acabar, roídas pelas horas, desmanchadas... O menino não podia ficar mais na cama. Estava já levantado e vestido, pegava o macaquinho e o enfiava no bolso, estava com fome.
O alpendre era um passadiço, entre o terreirinho mais a mata e o extenso outrolado – aquele escuro campo, sob rasgos, neblinas, feito um gelo, e os perolíns do orvalho: a ir até a fim de vista, à linha do céu de este, na extrema do horizonte. O sol ainda não viera.
Mas a claridade. Os cimos das árvores se douravam. As altas árvores depois do terreiro, ainda mais verdes, do que o orvalho lavara. Entremanhã - e de tudo um perfume, e passarinhos piando.
Da cozinha, traziam café.
E: - "Pst!" - apontou-se. A uma das árvores, chegara um tucano, em brando batido horizontal. Tão perto! O alto azul, as frondes, o alumiado amarelo em volta e os tantos meigos vermelhos do pássaro - depois de seu vôo. Seria de ver-se: grande, de enfeites, o bico semelhando flor de parasita. Saltava de ramo em ramo, comia da árvore carregada. Toda a luz era dele, que borrifava-a de seus coloridos, em momentos pulando no meio do ar, estapafrouxo, suspenso esplendentemente. No topo da árvore, nas frutinhas, tuco, tuco... daí limpava o bico no galho. E, de olhos arregaçados, o menino, sem nem poder segurar para si o embrevecido instante, só nos silêncios de um-dois-três. No ninguém falar. Até o tio. O tio, também, estava de fazer gosto por aquilo: limpava os óculos. O tucano parava, ouvindo outros pássaros - quem sabe, seus filhotes – da banda da mata. O grande bico para cima, desferia, por sua vez, às uma ou duas, aquele grito meio ferrugento dos tucanos: -
"Crrée!"...
O menino estando nos começos de chorar. Enquanto isso, cantavam os galos. O menino se lembrava sem lembrança nenhuma. Molhou todas as pestanas.
E o tucano, o vôo, reto, lento - como se voou embora, xô, xô! - mirável, cores pairantes, no garridir; fez sonho. Mas a gente nem podendo esfriar de ver. Já para o outro imenso lado apontavam.
De lá, o sol queria sair, na região da estrela-d'alva. A beira do campo, escura, como um muro baixo, quebrava-se, num ponto, dourado rombo, de bordas estilhaçadas. Por ali, se balançou para cima, suave, aos ligeiros vagarinhos, o meio-sol, o disco, o liso, o sol, a luz por tudo. Agora, era a bola de ouro a se equilibrar no azul de um fio. O tio olhava no relógio. Tanto tempo que isso, o menino nem exclamava. Apanhava com o olhar cada sílaba do horizonte. Mas não pudera combinar com o vertiginoso instante a presença de lembrança da mãe - sã, ah, sem nenhuma doença, conforme só em alegria ela ali teria de estar. E nem a ligeireza de idéia de tirar do bolso o companheiro bonequinho macaquinho, para que ele visse também: o tucano - o senhorzinho vermelho, batendo mãos, à frente o bico empinado. Mas feito se, a cada parte e pedacinho de seu vôo, ele ficasse parado, no trecho e impossivelzinho do ponto, nem no ar - por agora, sem fim e sempre.

O trabalho do pássaro
Assim, o menino, entre dia, no acabrunho, pelejava com o quenão queria querer em si. Não suportava atentar, a cru, nas coisas, como são, e como sempre vão ficando: mais pesadas, mais-coisas - quando olhadas sem precauções. Temia pedir notícias; temia a mãe na má miragem da doença? Ainda que relutasse, não podia pensar para trás. Se queria atinar com a mãe doente, mal, não conseguia ligar o pensamento, tudo na cabeça da gente daya num borrão. A mãe da gente era a mãe da gente, só; mais nada.
Mas, esperava; pelo belo. Havia o tucano - sem jaça - em voo e pouso e voo. De novo, de manhã, se endereçando só àquela árvore de copa alta, de espécie chamada mesmo tucaneira. E dando-se o raiar do dia, seu fôlego dourado. Cada madrugada, à horínha, o tucano, gentil, rumoroso: ... chégochéghégo... - em vôo direto, jazido, rente, traçado macio no ar, que nem um naviozinho vermelho sacudindo devagar as velas, puxado; tão certo na plana como se fosse um marrequinho deslizando para a frente, por sobre a luz de dourada água.
Depois do encanto, a gente entrava no vulgar inteiro do dia. O dos outros, não da gente. As sacudidelas do jipe formavam o acontecer mais seguido. A mãe sempre recomendara zelo com as roupinhas; mas a terra aqui era à. desafiada. Ah, o bonequinho macaquinho, mesmo sempre no bolso, se sujava mais de suor e poeira. Os mil e mil homens muitamente trabalhavam fazendo a grande cidade.
Mas o tucano, sem falta, tinha sua soêncía de sobrevir, todos ali o conheciam, no pintar da aurora. Fazia mais de mês que isso principiara. Primeiro, aparecera por lá uma bandada de uns 30 deles, vozeantes, mas sendo de- dia, entre dez e 11 horas. Só aquele ficara, porém, para cada amanhecer. Com os olhos tardos tontos de sono, o bonequinho macaquinho em bolso, o menino apressuradamente se levantava e descia ao alpendre, animoso de amar.
O tio lhe falava, com excessivos de agrado, sem o jeito nenhum.
Saiam - sobre o se-fazer das coisas. Tudo a poeira tapava. O bonequinho macaquinho, um dia, devia de poder ganhar algum outro chapeuzinho, de alta pluma; mas verde, da cor da gravata, tão sobressaída, com que o tio, de camisa, agora não estava. O menino, em cada instante, era como se fosse só uma certa parte dele mesmo, empurrado para diante, sem querer. O jipe corria por estradas de não parar, sempre novas. Mas o menino, em seu mais forte coração, declarava, só: que a mãe tinha de ficar boa, tinha de ficar salva!
Esperava o tucano, que chegava, a-justo, a-tempo, a-ponto, às seis e- vinte da manhã; ficava, de arvoragem, na copa da tucaneira, futricando as frutas, só os dez minutos, comidos e estrepulados. Dai, partia, sempre naquele outro-rumo, no antes do pingado meio-instante em que o sol arrebolava redondo do chão; porque o sol era às seis-e-meia. O tio media tudo no relógio.
De dia, não voltava lá. Se donde vinha e morava -das sombras do mato, os impenetráveis? Ninguém soubesse seus usos verdadeiros, nem os certos horários: os demais lugares, aonde iria achar comer e beber, sobre os pontos isolados.
Mas o menino pensava que devia acontecer mesmo assim – que ninguém soubesse. Ele vinha do diferente, só donde. O dia: o pássaro.
Entremeio, o tio, recebido um telegrama, não podia deixar de mostrar a cara apreensiva – o envelhecimento da esperança.
Mas, então, fosse o que fosse, o menino, calado consigo, teimoso de só amor, precisava de se repetir: que a mãe estava sã e boa, a mãe estava salva! De repente, ouviu que, para consolá-lo, combinavam maneira de pegar o tucano: com alçapão, pedrada no bico, tiro de espingardinha na asa. Não e não- zangou-se, aflito. O que cuidava, que queria, não podendo ser aquele tucano, preso. Mas a fina primeira luz da manhã, com, dentro dela, o voo exato.

O hiato
O que ele já era capaz de entender com o coração. Ao outro dia seguinte. Aí, quando o pássaro, seu raiar, cada vez, era um brinquedo de graça. Assim como o sol: daquela partezinha escura no horizonte, logo fraturada em fulgor e feito a casca de um ovo - ao termo da achãada e obscura imensidão do campo, por onde o olhar da gente avançava como no estender um braço.
O tio, entanto, diante dele, parou sem a qualquer palavra. O menino não quis entender nenhum perigo. Dentro do que era, disse, redisse: que a mãe nem nunca tinha estado doente, nascera sempre sã e salva! O vôo do pássaro habitava-o mais. O bonequinho macaquinho quase caíra e se perdera: já estando com a carinha bicuda e meio corpo saídos do bolso, bisbíllotados! O menino não lhe passara pito. A tornada do pássaro era emoção enviada, impressão sensível, um transbordamento do coração.
O menino o guardava, no fugidir, de memória, em feliz vôo, no ar sonoro, até a tarde. O de que podia se servir para consolar-se com, e desdolorir-se, por escapar do aperto de rigor - daqueles dias quadriculados. Ao quarto dia, chegou um telegrama. O tio sorriu, fortíssimo. A mãe estava bem, sarada! No seguinte -depois do derradeiro sol do tucano - voltariam para casa.

O desmedido momento
E, com pouco, o menino espiava, da janelinha, as nuvens de branco esgarçamento, o veloz nada. Entretempo, se atrasava numa saudade, fiel às coisas de lá. Do tucano e do amanhecer, mas também de tudo, naqueles dias tão piores: a casa, a gente, a mata, o jipe, a poeira, as ofegantes noites – o que se afinava, agora, no quase- azul de seu imaginar. A vida, mesmo, nunca parava. O tio, com outra gravata, que não era a tão bonita, com pressa de chegar olhava no relógio. Entrepensava o menino, já quase na fronteira soporosa. Súbita seriedade fazia-lhe a carinha mais comprida.
E, quase num pulo, agoniou-se: o bonequinho macaquinho nío estava mais em seu bolso! Não é que perdera o macaquinho companheiro! ... Como fora aquilo possível? Logo as lágrimas lhe saltavam.
Mas, então, o moço ajudante do piloto veio trazer-lhe, de consolo, uma coisa: - "Espia, o que foi que eu achei, para Você". - e era, desamarrotado, o chapeuzinho vermelho, de alta pluma, que ele, outro dia, tanto tinha jogado fora!
O menino não pôde mais atormentar-se de chorar. Só o rumor e o estar no avião o atontavam. Segurou o chapeuzinho sozinho, alisou-o, o pôs no bolso. Não, o companheirinho macaquinho não estava perdido, no sem-fundo escuro no mundo, nem nunca. Decerto, ele só passeava lá, porventuro e porvindouro, na outra-parte, aonde as pessoas e as coisas sempre iam e voltavam.
O menino sorriu do que sorriu, conforme de repente se sentia: para fora do caos pré- inicial, feito o desenglobar-se de uma nebulosa.
E era o inesquecível de-repente, de que podia traspassar-se, e a calma, inclusa. Durou um nemnada, como a palha se desfaz, e, no comum, na gente não cabe: paisagem, e tudo, fora das molduras. Como se ele estivesse com a mãe, sã, salva, sorridente, e todos, e o macaquinho com uma bonita gravata verde - no alpendre do terreirinho das altas árvores.., e no jipe aos bons solavancos... e em toda- aparte.., no mesmo instante só... o primeiro ponto do dia.., donde assistiam, em tempo-sobre-tempo, ao sol no renascer e ao voo, ainda muito mais vivo, entoante e existente - parado que não se acabava - do tucano, que vem comer frutinhas na dourada copa, nos altos vales da aurora, ali junto de casa.
Só aquilo. Só tudo.
- "Chegamos, afinal!" - o tio falou.
- "Ah, não. Ainda não..." -respondeu o menino.
Sorria fechado: sorrisos e enigmas, seus. E vinha a vida.

(Guimarães Rosa)

Tangerine-Girl
Rachel de Queiroz

De princípio a interessou o nome da aeronave: não "zepelim" nem dirigível, ou qualquer outra coisa antiquada; o grande fuso de metal brilhante chamava-se modernissimamente blimp. Pequeno como um brinquedo, independente, amável. A algumas centenas de metros da sua casa ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de amarração dos dirigíveis. E de vez em quando eles deixavam o poste e davam uma volta, como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio de voo. Assim, de começo, aos olhos da menina, o blimp existia como uma coisa em si — como um animal de vida própria; fascinava-a como prodígio mecânico que era, e principalmente ela o achava lindo, todo feito de prata, igual a uma jóia, librando-se majestosamente pouco abaixo das nuvens. Tinha coisas de ídolo, evocava-lhe um pouco o gênio escravo de Aladim. Não pensara nunca em entrar nele; não pensara sequer que pudesse alguém andar dentro dele. Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas de um golfinho; e, no entanto, o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode águia e golfinho, numa admiração gratuita — pois parece que é mesmo uma das virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe, em troca de sua contemplação pura e simples.
Os olhos da menina prendiam-se, portanto, ao blimp sem nenhum desejo particular, sem a sombra de uma reivindicação. Verdade que via lá dentro umas cabecinhas espiando, mas tão minúsculas que não davam impressão de realidade — faziam parte da pintura, eram elemento decorativo, obrigatório como as grandes letras negras U. S. Navy gravadas no bojo de prata. Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados em folha que fazem de chofer nos automóveis de brinquedo.
O seu primeiro contato com a tripulação do dirigível começou de maneira puramente ocasional. Acabara o café da manhã; a menina tirara a mesa e fora à porta que dá para o laranjal, sacudir da toalha as migalhas de pão. Lá de cima um tripulante avistou aquele pano branco tremulando entre as árvores espalhadas e a areia, e o seu coração solitário comoveu-se. Vivia naquela base como um frade no seu convento — sozinho entre soldados e exortações patrióticas. E ali estava, juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho, sacudindo um pano entre a mancha verde das laranjeiras, uma mocinha de cabelo ruivo. O marinheiro agitou-se todo com aquele adeus. Várias vezes já sobrevoara aquela casa, vira gente embaixo entrando e saindo; e pensara quão distantes uns dos outros vivem os homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. Ele estava voando por cima das pessoas, vendo-as, espiando-as, e, se algumas erguiam os olhos, nenhuma pensava no navegador que ia dentro; queriam só ver a beleza prateada vogando pelo céu.
Mas agora aquela menina tinha para ele um pensamento, agitava no ar um pano, como uma bandeira; decerto era bonita — o sol lhe tirava fulgurações de fogo do cabelo, e a silhueta esguia se recortava claramente no fundo verde-e-areia. Seu coração atirou-se para a menina num grande impulso agradecido; debruçou-se à janela, agitou os braços, gritou: "Amigo!, amigo!"— embora soubesse que o vento, a distância, o ruído do motor não deixariam ouvir-se nada. Ficou incerto se ela lhe vira os gestos e quis lhe corresponder de modo mais tangível. Gostaria de lhe atirar uma flor, uma oferenda. Mas que podia haver dentro de um dirigível da Marinha que servisse para ser oferecido a uma pequena? O objeto mais delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça branca, pesada como uma bala de canhão, na qual em breve lhe iriam servir o café. E foi aquela caneca que o navegante atirou; atirou, não: deixou cair a uma distância prudente da figurinha iluminada, lá embaixo; deixou-a cair num gesto delicado, procurando abrandar a força da gravidade, a fim de que o objeto não chegasse sibilante como um projétil, mas suavemente, como uma dádiva.
A menina que sacudia a toalha erguera realmente os olhos ao ouvir o motor do blimp. Viu os braços do rapaz se agitarem lá em cima. Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair na areia; teve um susto, pensou numa brincadeira de mau gosto — uma pilhéria rude de soldado estrangeiro. Mas quando viu a caneca branca pousada no chão, intacta, teve uma confusa intuição do impulso que a mandara; apanhou-a, leu gravadas no fundo as mesmas letras que havia no corpo do dirigível: U. S. Navy. Enquanto isso, o blimp, em lugar de ir para longe, dava mais uma volta lenta sobre a casa e o pomar. Então a mocinha tornou a erguer os olhos e, deliberadamente dessa vez, acenou com a toalha, sorrindo e agitando a cabeça. O blimp fez mais duas voltas e lentamente se afastou — e a menina teve a impressão de que ele levava saudades. Lá de cima, o tripulante pensava também — não em saudades, que ele não sabia português, mas em qualquer coisa pungente e doce, porque, apesar de não falar nossa língua, soldado americano também tem coração.
Foi assim que se estabeleceu aquele rito matinal. Diariamente passava o blimp e diariamente a menina o esperava; não mais levou a toalha branca, e às vezes nem sequer agitava os braços: deixava-se estar imóvel, mancha clara na terra banhada de sol. Era uma espécie de namoro de gavião com gazela: ele, fero soldado cortando os ares; ela, pequena, medrosa, lá embaixo, vendo-o passar com os olhos fascinados. Já agora, os presentes, trazidos de propósito da base, não eram mais a grosseira caneca improvisada; caíam do céu números da Life e da Time, um gorro de marinheiro e, certo dia, o tripulante tirou do bolso o seu lenço de seda vegetal perfumado com essência sintética de violetas. O lenço abriu-se no ar e veio voando como um papagaio de papel; ficou preso afinal nos ramos de um cajueiro, e muito trabalho custou à pequena arrancá-lo de lá com a vara de apanhar cajus; assim mesmo ainda o rasgou um pouco, bem no meio.
Mas de todos os presentes o que mais lhe agradava era ainda o primeiro: a pesada caneca de pó de pedra. Pusera-a no seu quarto, em cima da banca de escrever. A princípio cuidara em usá-la na mesa, às refeições, mas se arreceou da zombaria dos irmãos. Ficou guardando nela os lápis e canetas. Um dia teve idéia melhor e a caneca de louça passou a servir de vaso de flores. Um galho de manacá, um bogari, um jasmim-do-cabo, uma rosa menina, pois no jardim rústico da casa de campo não havia rosas importantes nem flores caras.
Pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglesa; quando ia ao cinema, prestava uma atenção intensa aos diálogos, a fim de lhes apanhar não só o sentido, mas a pronúncia. Emprestava ao seu marinheiro as figuras de todos os galãs que via na tela, e sucessivamente ele era Clark Gable, Robert Taylor ou Cary Grant. Ou era louro feito um mocinho que morria numa batalha naval do Pacífico, cujo nome a fita não dava; chegava até a ser, às vezes, careteiro e risonho como Red Skelton. Porque ela era um pouco míope, mal o vislumbrava, olhando-o do chão: via um recorte de cabeça, uns braços se agitando; e, conforme a direção dos raios do sol, parecia-lhe que ele tinha o cabelo louro ou escuro.
Não lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo marinheiro. E, na verdade, os tripulantes se revezariam diariamente: uns ficavam de folga e iam passear na cidade com as pequenas que por lá arranjavam; outros iam embora de vez para a África, para a Itália. No posto de dirigíveis criava-se aquela tradição da menina do laranjal. Os marinheiros puseram-lhe o apelido de "Tangerine-Girl". Talvez por causa do filme de Dorothy Lamour, pois Dorothy Lamour é, para todas as forças armadas norte-americanas, o modelo do que devem ser as moças morenas da América do Sul e das ilhas do Pacífico. Talvez porque ela os esperava sempre entre as laranjeiras. E talvez porque o cabelo ruivo da pequena, quando brilhava á luz da manhã, tinha um brilho acobreado de tangerina madura. Um a um, sucessivamente, como um bem de todos, partilhavam eles o namoro com a garota Tangerine. O piloto da aeronave dava voltas, obediente, voando o mais baixo que lhe permitiam os regulamentos, enquanto 0 outro, da janelinha, olhava e dava adeus.
Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a ideia de atirar um bilhete. Talvez pensassem que ela não os entenderia. Já fazia mais de um mês que sobrevoavam a casa, quando afinal o primeiro bilhete caiu; fora escrito sobre uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista: laboriosamente, em letras de imprensa, com os rudimentos de português que haviam aprendido da boca das pequenas, na cidade: "Dear Tangeríne-Gírl. Please você vem hoje (today) base X. Dancing, show. Oito horas P.M." E no outro ângulo da revista, em enormes letras, o "Amigo", que é a palavra de passe dos americanos entre nós.
A pequena não atinou bem com aquele "Tangerine-Girl". Seria ela? Sim, decerto... e aceitou o apelido, como uma lisonja. Depois pensou que as duas letras, do fim: "P.M.", seriam uma assinatura. Peter, Paul, ou Patsy, como o ajudante de Nick Carter? Mas uma lembrança de estudo lhe ocorreu: consultou as páginas finais do dicionário, que tratam de abreviaturas, e verificou, levemente decepcionada, que aquelas letras queriam dizer "a hora depois do meio-dia".Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao abrir a revista, depois que o blimp se afastou. E estimou que assim o fosse: sentia-se tremendamente assustada e tímida ante aquela primeira aproximação com o seu aeronauta. Hoje veria se ele era alto e belo, louro ou moreno. Pensou em se esconder por trás das colunas do portão, para o ver chegar - e não lhe falar nada. Ou talvez tivesse coragem maior e desse a ele a sua mão; juntos caminhariam até a base, depois dançariam um fox langoroso, ele lhe faria ao ouvido declarações de amor em inglês, encostando a face queimada de sol ao seu cabelo. Não pensou se o pessoal de casa lhe deixaria aceitar o convite. Tudo se ia passando como num sonho — e como num sonho se resolveria, sem lutas nem empecilhos.
Muito antes do escurecer, já estava penteada, vestida. Seu coração batia, batia inseguro, a cabeça doía um pouco, o rosto estava em brasas. Resolveu não mostrar o convite a ninguém; não iria ao show; não dançaria, conversaria um pouco com ele no portão. Ensaiava frases em inglês e preparava o ouvido para as doces palavras na língua estranha. Às sete horas ligou o rádio e ficou escutando languidamente o programa de swings. Um irmão passou, fez troça do vestido bonito, naquela hora, e ela nem o ouviu. Às sete e meia já estava na varanda, com o olho no portão e na estrada. Às dez para as oito, noite fechada já há muito, acendeu a pequena lâmpada que alumiava o portão e saiu para o jardim. E às oito em ponto ouviu risadas e tropel de passos na estrada, aproximando-se.
Com um recuo assustado verificou que não vinha apenas o seu marinheiro enamorado, mas um bando ruidoso deles. Viu-os aproximarem-se, trêmula. Eles a avistaram, cercaram o portão — até parecia manobra militar —, tiraram os gorros e foram se apresentando numa algazarra jovial.
E, de repente, mal lhes foi ouvindo os nomes, correndo os olhos pelas caras imberbes, pelo sorriso esportivo e juvenil dos rapazes, fitando-os de um em um, procurando entre eles o seu príncipe sonhado — ela compreendeu tudo. Não existia o seu marinheiro apaixonado — nunca fora ele mais do que um mito do seu coração. Jamais houvera um único, jamais "ele" fora o mesmo. Talvez nem sequer o próprio blimp fosse o mesmo...
Que vergonha, meu Deus! Dera adeus a tanta gente; traída por uma aparência enganosa, mandara diariamente a tantos rapazes diversos as mais doces mensagens do seu coração, e no sorriso deles, nas palavras cordiais que dirigiam à namorada coletiva, à pequena Tangerine-Girl, que já era uma instituição da base — só viu escárnio, familiaridade insolente... Decerto pensavam que ela era também uma dessas pequenas que namoram os marinheiros de passagem, quem quer que seja... decerto pensavam... Meu Deus do Céu!
Os moços, por causa da meia-escuridão, ou porque não cuidavam naquelas nuanças psicológicas, não atentaram na expressão de mágoa e susto que confrangia o rostinho redondo da amiguinha. E, quando um deles, curvando-se, lhe ofereceu o braço, viu-a com surpresa recuar, balbuciando timidamente:
Desculpem... houve engano... um engano...
E os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram fugir, a princípio lentamente, depois numa carreira cega. Nem desconfiaram que ela fugira a trancar-se no quarto e, mordendo o travesseiro, chorou as lágrimas mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos. Nunca mais a viram no laranjal; embora insistissem em atirar presentes, viam que eles ficavam no chão, esquecidos — ou às vezes eram apanhados pelos moleques do sítio.

(Considerado um dos cem melhores contos brasileiros do século, o texto acima foi extraído do livro O melhor da crônica brasileira, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1997, pág. 47)